2º Encontro - CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESPECIAL
UM TIRO NO
PRECONCEITO
*** Um tiro no
preconceito Jornal do Brasil Sábado, 14/09/96
“Tia, meu amigo
nasceu com seis dedos. Minha prima toma injeção todo dia, ela tem diabetes. A
vovó faz xixi pela barriga. Aquele menino perdeu muita prova porque tem falta
de ar. Sente esse caroço na minha cabeça que a mamãe esconde com o cabelo...”
Adulto tem pavor de assuntos relacionados à deficiência. Acha até que dá azar.
Criança não, quer saber sobre o que não entende: diferenças individuais.
Encontra as respostas de que necessita? Difícil. Pais e professores costumam
achar natural não terem informações corretas sobre doenças crônicas, distúrbios
neuro-psico-motores, síndromes genéticas e situações que levam a incapacidades.
Desde 1992 me especializo em levar informações relacionadas à deficiência para
adultos e crianças. Percebi que informação correta para o adulto apenas
civiliza seu preconceito. Mas o sentimento continua lá, esperando para dar o
bote. Para minimizar o preconceito será preciso impedir que ele se instale. Daí
a importância da literatura infantil, arma poderosa e pouco utilizada no
combate a qualquer discriminação. Passei por uma experiência decisiva. Em 1994,
escrevi a coleção Meu Amigo Down. Ao divulgá- la nas escolas eu era torpedeada
pelos alunos com perguntas sobre anormalidades. Tornei-me a deixa para que
abordassem assuntos que os afligiam e os deixavam curiosos. Fiquei aflita com a
aflição deles. Certa de que criança tem direito de ter informação de qualquer
natureza numa linguagem acessível, escrevi o livro Um amigo diferente? (Editora
WVA). O livro conta a história de um amigo que afirma ser diferente. Muito ou
pouco? De que jeito? A cada página, o amigo imaginário dá pistas novas,
atiçando a imaginação da criançada. E o leitor vai se deparando com temas pouco
abordados como hemofilia, artrite, diabetes, doença renal, deficiências
físicas, sensorial e mental, entre outros. Mas que ninguém se espante. O livro
é alegre, colorido e divertido. Desejo oficializar nas salas de aula e nos
lares brasileiros a discussão sobre as diferenças individuais. Torço para
familiares e educadores se interessarem por esses temas. Ou persistiremos no
erro de construir cidadãos pela metade? O preconceito contra os diferentes
nasce na infância. No jantar, o filho pergunta: “pai o que é ostomia?” O adulto
responde: “não pensa nisso, é muito triste, come senão a comida vai esfriar”.
Sem resposta, e vendo sua dúvida desvalorizada, a criança se cala. O que
deveria ser esclarecido vira mistério, tabu. Eu sei, nada é tão simples. Mas
por não termos sido educados para entender a diversidade como situação natural,
hoje relutamos em obedecer leis e seguir regras sociais que dêem às pessoas com
deficiência um direito assegurado na Constituição Federal: a cidadania. Por
isso, defendo a sociedade inclusiva. Nela, não haverá espaço para aceitar
crianças e adolescentes com deficiências e depois bater no peito ou dormir com
a sensação de termos sido bonzinhos. Na sociedade inclusiva ninguém é bonzinho.
Cada cidadão é consciente de sua responsabilidade na construção de um mundo que
dê oportunidade para todos. Jovens crescerão convictos de que se relacionar com
pessoas deficientes não é favor, mas troca. Nesse ideal de inclusão, difundido
internacionalmente nos últimos anos, felizes das escolas que se propuserem a
ser transformadoras, empenhando-se em formar cidadãos mais éticos, capazes de
respeitar aqueles que são - ou estão - diferentes. Acredito na força de um lar
no qual os adultos, questionados sobre temas que lhes incomodem, abram seus
corações e seus dicionários com o mesmo orgulho que orientam os filhos sobre
política ou economia. Portadores de diferenças querem ser levados à sério.
Assumirão sua condição com cada vez mais dignidade. Se nós, portadores de
diferenças menores, permitirmos... Como diz o personagem do livro Um amigo
diferente?: “Você está preocupado comigo? Obrigado. Mas eu vou em frente. Essa
é a minha vida”.
Claudia Werneck é
jornalista e escritora, responsável pelo projeto Muito prazer, eu existo ***
1º Encontro - CADERNOS DE APRESENTAÇÃO e FORMAÇÃO DE PROFESSORES
FORAM MUITOS, OS PROFESSORES(*)
Bartolomeu Campos de Queiroz
"Minha mãe guardava com
cuidados de sete chaves, sobre a cômoda do quarto, três cadernos. No primeiro,
ela copiava receitas de amorosos doces: suspiros, amor em pedaços,
baba-de-moça, casadinhos, e fazia olho-de-sogra de cor. No segundo caderno, ela
anotava riscos de bordados, com nomes camuflados em pesares: ponto-atrás, ponto
de sombra, ponto de cruz, ponto de cadeia, laçadas e nós. No terceiro ela
escondia longas poesias, boiando em sofrimentos: A Louca d’Albano, Tédio, 0
Beijo do Papai. Eu reparava seus cadernos, encardidos pelo tempo e pelo uso,
admirava sua letra redonda e grande, com caneta de molhar, sem ainda desconfiar
das palavras. Eu sabia do todo, sem suspeitar das partes. Durante muitas
tardes, com o pensamento enfastiado de passado, ela passava as páginas,
lentamente, espreitando as folhas vazias, como se cansada de escrever e de
pouco exercer. Eram sempre as mesmas comidas, os mesmos pontos, a mesma poesia
e muito por decidir.
Meu pai, junto ao rádio no alto
da cristaleira e longe do meu alcance, protegia alguns poucos livros sobre
homens célebres, com vidas prósperas sem precisar viajar de sol a sol. Aos
pedaços ele lia os compêndios, escutando a Voz do Brasil ou o Repórter Esso. Eu
apreciava seu silêncio, sem me aventurar em perguntas ou demandas. De vez em
quando ele interrompia a leitura e me acariciava com os olhos, me amando sem
mãos, como se me desejando outros futuros diferentes do seu. (...)
(...) Minha avó, toda manhã,
ainda em jejum, arrancava a página da folhinha Mariana e lia as recomendações.
Meditava, cambaleando no meio da sala, sobre o pensamento escrito no verso do
papel para depois conferir a fase da Lua, a previsão das enchentes e estiagens.
Em seguida acendia mais uma vela para os santos do dia: santa Genoveva, são
Phillippus, são Clemente Maria, santo Antão, santo Agripino. Eu reparava sua fé
e guardava o papelzinho como se armazenando sabedoria, como se acreditando na
possibilidade de o passado se repetir no futuro. (...)
(...) Maria Turum, empregada
antiga de meu avô, sabia de um tudo sem conhecer as letras. Conforme o meu
olhar, ela me oferecia um pedaço de doce ou me abraçava em seu colo. Combinava
o tempo de chuva com comida de angu, carne moída e quiabo, sem consultar
caderno de receitas. Se meu avô pisasse mais forte, ela apressava o almoço; e,
se tossia durante a noite, vinha um prato de mingau, com pedaços de queijo, no
café da manhã. Ao apertar com os dedos um grão de feijão, sabia se estava
cozido ou se precisava de mais um caneco de água. Olhava o céu e deixava a
roupa para ser lavada em outro dia, pois faltaria sol para corar os lençóis.
(...)
(...) Meu avô, arrastando
solidão, escrevia nas paredes da casa. As palavras abrandavam sua tristeza,
organizavam sua curiosidade silenciosamente. Grafiteiro, afiava o lápis como
fazia com a navalha. A cidade era seu assunto: amores desfeitos, madrugada e
fugas, casamentos e traições, velórios e heranças. Contornava objetos: serrote,
tesoura, faca, machado - e ainda escrevia dentro dos desenhos um pouco do
destino de cada coisa; o serrote sumiu, a tesoura quebrou, o machado perdeu o
corte. Eu, devagarinho, fui decifrando sua letra, amarrando
as palavras e amando seus
significados. Meu avô era um construtivista (sem conhecer nem a Emília do
Lobato) pela sua capacidade de não negar sentido às coisas. Tudo lhe servia de
pretexto.
Eu restava horas sem fim, de
coração aflito, seduzido pelas histórias de amor, de desafeto, de ingratidão,
de mentiras do meu primeiro livro - as paredes da casa do meu avô. Assim,
percebi o serviço das palavras (...)
(...) Meu avô poderia ter sido
meu primeiro professor se fizesse plano de aula, ficha de avaliação, tivesse
licenciatura plena. O fato é que ele não aplicava prova, não passava dever de
casa nem brincava de exercício de coordenação motora. Jamais me pediu que
acompanhasse o caminho que o coelhinho fazia para comer a cenourinha nem me deu
flor para colorir. Minha coordenação motora eu desenvolvi andando sobre os
muros ou pernas de pau, subindo em árvores, acertando as frutas com estilingue
ou enfiando linha na agulha para minha avó chulear. (...) Meu avô escancarava o
mundo com letra bonita e me deixava livre para desvendar sua escritura.
(...) Mesmo assim, cada dia eu
conhecia mais palavras e mais distâncias, combinando melhor as orações. E suas
paredes mais se enchiam de avisos sobre o mundo e as fronteiras do mundo. Eu
decorava tudo e repetia timidamente. Eram tranqüilas suas aulas, e o maior
encanto estava em meu avô cultivar suas dúvidas. (...) Às vezes ele me pegava
esticando o pescoço, tentando alcançar um pedaço mais longe, um parágrafo mais
alto. (...)
(...) Não sei se aprendi a fazer
contas com meu avô. Ele mais me ensinava a "fazer de conta". No
entanto, eu diferenciava o mais alto do mais baixo, o bife maior do menor, as
noites mais frias das noites mais quentes, o mais bonito do mais feio, a
montanha mais longe, a dor mais pesada, a tristeza mais breve, a falta mais
constante. Mas acreditava, e hoje ainda mais, não ser a casa de meu avô uma
escola. Ela não possuía cartazes de cartolina nas paredes, vidro com semente de
feijão brotando, cantinho de leitura com livrinhos infantis, lista de ajudantes
do dia, tanque de areia, palhacinho de isopor, flanelógrafo de feltro verde.
(...)
(...) Meu avô não usava toquinhos
coloridos, tampinhas de garrafa, palitos de picolé nem me exigia uniforme. Ele
nunca me convidou para fazer "rodinha”. Aprendi, porém, e como ninguém, a
dar nós cegos em barbante, seu passatempo preferido. Meu avô me dizia: "um
bom nó cego tem que ser ainda surdo e mudo". Penso ter vindo daí essa
minha paixão pelos abraços e pelos laços.
Em minha casa ninguém atribuía
importância às minhas leituras. Eu aproveitava pedaços de jornais que vinham
embrulhando coisas e lia em voz alta, procurando atenções e reconhecimentos. Meu
pai me olhava e repetia sempre: "Menino, deixe de inventar histórias, você
não sabe ler, nunca foi à escola" ou "Menino, deixe esse papel e vá
procurar serviço melhor pra fazer".
Passei a duvidar da escola.
Parecia-me um lugar só para dar autorizações. Se a escola não autorizasse, eu
não poderia saber. O medo desse lugar passou a reinar em minha cabeça. (...)
Mas logo me veio uma idéia: quando eu entrar para a escola, eu faço de conta
que esqueci tudo e começo a aprender de novo. (...)
(...) Cheguei (à escola) de
uniforme novo costurado pelo carinho de minha madrinha. O caderno era Avante,
com menino bonito na capa, sustentando uma bandeira com um Brasil despaginado
pelo vento. Menino rico, forte, com sapatos e meias soquete. O estojo de
madeira estava completo: dois lápis Johann Faber com borracha verde na ponta e
mais um apontador de metal. Um copo de alumínio, abrindo e fechando como
acordeon de Mário Zan, completava as exigências da escola. Só minha cabeça
andava aflita para esquecer. E esquecer é não existir mais. Isso não é tarefa
fácil para quem aprendia em liberdade, escolhia pelo prazer, guardava pela
importância.
Fui acolhido por dona Maria
Campos, minha primeira professora, com livro de chamada, caderno com plano de
aula encapado com papel de seda. No pátio ela nos leu da cabeça aos pés,
conferindo a limpeza do uniforme, as unhas lavadas, o cabelo penteado. Pela
primeira vez me senti o seu livro. Miúdo, descalço, morria de inveja do menino
Avante guardado no embornal. Fui o primeiro da fila. Dona Maria Campos segurou
minha mão e a fila foi andando em direção à sala de aula. Mão fina e macia como
o algodão da paineira, que minha mãe colhia aos tufos e costurava travesseiro
com cheiro de mato. Meu coração disparou de amor e mão. (...)
(...) Ela (a professora) me
emprestou seu lenço quando minha mãe viajou doente para capital. Eu não usei.
Preferi usar, como de costume, a manga da camisa, com medo de sujar no nariz e
ela não mais gostar de mim. Todo o cuidado era pouco para não perder o seu
amor. (...)
(...) Encher o caderno com
fileiras e fileiras de a, e, i, o, u foi o primeiro exercício. Vaidosa, ela me
apresentava os sinais para escrever e ler o mundo. Ganhar o seu visto feito com
lápis azul ou vermelho riscava com alegria toda a minha vida. (...)
(...) Eu lia os cartazes, colava
as sílabas, recortadas, com grude de polvilho, mentindo descobrir pela primeira
vez as palavras. Vencia as horas folheando a cartilha, lendo até o fim, em
silêncio, guardando em segredo os depois. A professora jamais soube do meu
adiantamento. Na primeira carteira eu prestava atenção a tudo, sendo elogiado
como um menino aplicado, cheio de futuros. Nunca soube se precisava mesmo de
suas lições ou de seu carinho. E isso ela bem me presenteava. Eu aprendia para
ela. Mas, se não me esqueci de sua presença, valeu a pena. (...)
(...) Sei que nestes atos
singelos, praticados com gestos amorosos, dona Maria Campos me ensinou demais,
muito além das paredes de meu avô. Ou melhor, me ensinava serem muitos os
lugares da escrita e da leitura. De suas histórias lidas no fim da aula, eu
ainda guardo o cheiro do livro.
Ingênuo, supondo ser a vida um
processo de soma e não de subtração, juntei de cada um dos meus mestres um
pedaço e protegi em minha intimidade. Concluo agora que, de tudo aprendido,
resta a certeza do afeto como a primordial metodologia. Se dona Maria me tivesse
dito estar o céu no inferno e o inferno no céu, seu carinho não me permitiria
dúvidas.
Os cadernos de receitas de minha
mãe, os livros velhos de meu pai, as paredes de meu avô, o livro de sant'Ana, a
mudez de Maria Turum, a fé viva de minha avó, a preguiça meu irmão e tudo o
mais, tudo ficou definitivamente impossível de ser desaprendido. (...)
Referência
*Meu professor inesquecível:
ensinamentos e aprendizados contados por alguns dos nossos melhores escritores
organização de Fanny Abramovich. - São Paulo: Editora Gente, 1997.
2º Econtro - CADERNO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL
Slides
"A Promessa do Girino"